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DICIONÁRIO DE MEMÓRIAS

Esses verbetes são lembranças de fatos que vivi, escutei ou li. Podem conter invenções, todas memórias as têm ou, quem sabe, conter até algumas verdades úteis para muitas pessoas.

A CURVATURA DA LUZ

Exposição de artes plásticas ocorrida, em maio de 2009, em Sobral, por ocasião das comemorações dos 90 anos da comprovação da Teoria da Relatividade de Alberto Einstein, acontecida a partir das medições do percurso das estrelas no céu de Sobral, realizadas no eclipse, em 1919. O nome é poético de propósito. O tema geral da exposição era científico, a comemoração era de caráter ciêntífico, a comprovação da atração da luz pela materia, lógicamente o nome da mostra deveria deixar transparecer que a exposição não tinha postura científica. A intenção era fugir da influência do ambiente exclusivamente científico e reunir obras de diversos artistas que representassem, utilizando as suas linguagens artísticas, as suas visões do fenômeno que possibilitou a comprovação da Teoria da Relatividade. Muitas das obras enviadas pelos artistas foram surpreendentes. Todos artístas mostraram sua visões do fato científico sob o olhar transfigurador da arte. A exposição foi magnífica. Participaram da mostra, ocorrida no Museu do Eclipse, os artistas José Rincon, Júlio Le Parc, ????. Para realizar a exposição tive a colaboração de Paco Lara e José Guedes.

ABRACADABRA

Não acredito que essa palavra cure febres, inflamações, quando carregada no peito, ou abra portas. Sempre gostei dela. A acho sonora e intrigante. Suponho que vem do aramaico com o significado de “Eu crio enquanto falo”. Para mim, atualmente, Abracadabra é o nome de uma empresa de consultoria em comunicação, coordenada pelos amigos Alysson e Monique. Eu os conheci realizando trabalhos de consultoria para o SEBRAE – Ce, trabalhando com DESIGN, no início do século XXI. Depois trabalharam para mim e trabalhei para eles. São muito talentosos e profissionais. Como acredito que o princípio das coisas está nas palavras – abracadabra.

ACADEMIA CEARENSE DE LETRAS

A Cearense é a Academia de Letras mais antiga do Brasil. Foi fundada em 1894, três anos antes da Academia Brasileira de Letras. Trabalhei por um tempo na Academia, ajudando na produção das comemorações do centenário da instituição. Desfrutei da Benevides, Eduardo Campos, Mozart Soriano Aderaldo, foram os mais próximos. Na academia para tirar um pouco do espírito do passado, com suas paredes repletas de retratos acadêmicos e pinturas de artistas dos anos trinta do século passado, solicitei de alguns amigos mais chegados algumas obras mais modernas. Recebemos doações de Aldemir Martins, Heloisa Juaçaba, Patrícia Ary, Herbert Rolim, José Guedes, Floriano Teixeira, José Mesquita e outros, misturando-os aos Raimundo Cela, Vicente Leite, Otacílio e Sinhá D’Amora já existentes na casa, o que de algum modo fez perceber que a instituição, ao completar cem anos de existência, ainda tinha sintonia com tempos mais modernos e olhos para a atualidade.

AFONSO LOPES

Pintor e desenhista. Nasceu em Fortaleza, em 1918. Iniciou ainda menino desenhando com tijolo e carvão nas calçadas da cidade. No inicio dos anos quarenta pinta suas primeiras telas. Foi ao lado de artistas como Barrica, Mário Barata e outros, que sentiu explodir o seu talento. Tomou parte de várias mostras coletivas e salões oficiais, destacando-se os primeiros Salões de Abril, onde obteve premiações em 1946, 47, 48 e 1949. No livro “Esquema da Pintura no Ceará” (1949), Barbosa Leite comenta sobre o artista: “Este pintor cearense é um dos maiores valores da nossa pintura. Suas telas impressionam vivamente. São retalhos de luz cheios de sugestão e beleza”. Em 1951, realiza a sua primeira exposição individual. Em 1986, realizou mostra individual no Imperial Othon Palace Hotel, em Fortaleza. Afonso Lopes faleceu em 2000, em Fortaleza. Realizei, como curador, para o Banco do Estado do Ceará – BEC, em 2004, na “agência dos peixinhos”, no centro de Fortaleza, uma mostra individual de Afonso Lopes, pós mortem, com o acervo de pinturas de sua autoria que possuia o banco. Afonso era um artísta popular por excelência. A sua pintura encantava a todos pelos temas, regionalidade e competência de realização. Com pinceladas rápidas e livres, em cores quase retiradas da nossa natureza, conseguia, como ninguém captar a paisagem local, a expressão e gesto do nosso povo. O que mais me encanta nas suas pinturas de Afonso é a complexa construção de cenas repletas de gente e objetos, como nas feiras populares, nos comércios que se desenvolviam em torno das antigas estações de trem e nas festas populares. Todavia mais que suas pinturas. Todavia, mais facinantes ainda são os seus desenhos. Que habilidade no definir das formas e na precisão das posturas da população mais humilde. Parece-me que Afonso sabia exatamente o que desenhava ou pintava, parece que ele carregava na mente o que registrava na tela ou papel. Chego a imaginar que ele, se cego fosse, riscaria e lançaria as cores com a mesma energia e precisão.

ALDEMIR MARTINS

Pintor, desenhista e gravador. Aldemir nasceu em Ingazeiras, na região do Cariri, em 1922. Ainda criança, sua família transfere-se para Guaiúba, na região metropolitana de Fortaleza, onde residiu até os dezoito anos, quando veio servir ao exército, no 23 BC, na capital do Ceará. No exército, foi companheiro de Antônio Bandeira. Suas obras se encontram em museus e coleções privadas na França, Suíça, Itália, Alemanha, Polônia, México, Argentina, Uruguai, Peru, Estados Unidos, Chile e Brasil. Não sei o porque, mas Aldemir sempre me tratou com muita generosidade. Sempre que vinha a Fortaleza, comunicava-se para irmos ao mercado central comer em algum restaurante popular. Mesmo com proibição médica, gostava de abocanhar comidas regionais, como panelada e sarrabulho. Gostava também da fritada de caranguejo do retaurante Carneirinho e de outros pratos do mesmo gênero elaborados pelo Faustino. Aldemir sempre trazia presentes: tintas, pincéis e gravuras. Uma vez me presenteou com 35 gravuras de sua autoria. Sempre que ia à São Paulo, onde Aldemir tinha atelier, eu fazia questão de visitá-lo. Sobre ele escreví, em 2002, um texto para marcar os seus oitenta anos de idade que dizia: Aldemir Martins nasceu, em Ingazeiras, no mesmo ano que aconteceu a famosa Semana de Arte Moderna, em 1922. Caboclo esperto, no início dos anos 40, criou juntamente com Mário Barata, Barbosa Leite, Antônio Bandeira, Carmélio Cruz, João Maria Siqueira, Inimá de Paula e outros, a Sociedade Cearense de Artistas Plásticos - Scap, responsável pela renovação do ambiente artístico cearense. Pintor, desenhista, gravador, escultor, entre muitas outras coisas no mundo das artes, já havia ganhado o mundo quando foi premiado no Salão de Abril, em 1948.  Participou de várias Bienais de São Paulo obtendo, entre outros prêmios, o de Melhor Desenhista Nacional, em 1955. Obteve também o prêmio de Viagem ao Estrangeiro do Salão Nacional de Arte Moderna, em 1959. Em 1956, conquistou a láurea mais importante de sua carreira: o Prêmio Internacional de Desenho da Bienal de Veneza, que o consagrou definitivamente; e, em 1972, o 1º Prêmio da Bienal dos Esportes, em Barcelona. Suas obras se encontram em museus e coleções de muitos países, França, Suíça, Oropa e Bahia. Desenhos e pinturas de sua autoria foram reproduzidos em inúmeros produtos industriais tais como pratos, bandejas, xícaras, tecidos, embalagens e na abertura das novelas "Gabriela, Cravo e Canela (1975) e "Terras do Sem Fim" (1981), o que o tornou um dos artistas plásticos mais conhecidos do país. Aldemir jamais perdeu o contato com o Ceará e se gaba disso: “Retorno sempre ao Ceará, aos seus bonecos de pano, suas figuras de carvão na parede, seus bichos de tijolo na calçada, no muro do Náutico da praia Formosa, os navios sumários e poderosos nas fachadas das bodegas de cachaça do Pirambu. Volto aos vaqueiros ‘assinando’ o gado, às louceiras fazendo formas de panela, bules, jarras e cacos de torrar café. E tudo isto que eu carrego comigo é o meu desenho”. Isso foi escrito numa carta de Roma a um amigo do Ceará, em 1961. E continua: “Sobre tudo isso meto o meu tracejado, que aprendi das rendeiras, ponto de mosca, cruz e bico, e renda mesmo, trançado de palha de chapéu de catolé e de caçuá de banana. Bananas estão sempre cheias de desenho amadurecendo. E as nódoas da banana e do caju na roupa da gente, fazendo desenhos belíssimos, você já viu? Tudo isso é o meu desenho, disso não quero e não posso me desvencilhar. Menino contando histórias e riscando no chão, ao mesmo tempo com ingenuidade e malícia, a malícia e a ingenuidade de quem sabe pescar de mão, seguir rastro de boi e caçar de visgo e arapuca. Arapuca que a memória me empresta para fazer o quadrado do meu desenho e nele aprisionar as ‘as pessoas personagens’ que invento e crio”. Na verdade Aldemir nunca deixou o Ceará. Ele é o Ceará. Cada desenho que ele faz é um pedaço de si; é um pedaço do Ceará feito arte. Aldemir é a memória do Ceará transmutada em Arte. Arte assim com letra maiúscula para que não se fale besteira, como é comum se ouvir falar nos últimos tempos sobre os artistas que trabalham com as técnicas mais tradicionais e com os universos poéticos que permitem ligações diretas com as realidades. Ele ensinou o Brasil a se ver nos seus cangaceiros, rendeiras, beatos, pescadores e mil pássaros de plumagens desconhecidas e já conhecidas recriadas em mil cores de sonho. Ele nos mostrou novos modos de ver os nossos bichos, nos ajudando a construir o país e a ser o que somos. Aproximadamente vinte anos atrás (creio na década de 1980) escrevi que no trabalho de Aldemir “encontramos o cheiro das cajás, o perfume das goiabas maduras, os matizes da manga rosa, a cor dos sapotis e o sabor das serigüelas vermelhas retirados do pé. É também em Aldemir que encontramos o traço do mandacaru e o corte do seu espinho, as curvas das cerâmicas de Cascavel, as texturas dos barros de Iguatu e o emaranhado das linhas trançadas pelos bilros”. Hoje continuo olhando seus desenhos, gravuras e pinturas e, através delas, reconhecendo o meu país, o meu lugar, o Ceará com suas formas, seus odores, perfumes e sabores. Aldemir transforma as suas memórias do Ceará em Arte pura. Agora, em 2016, ainda não mudaria uma palavra do texto. Aldemir foi membro da comissão julgadora do Salão de Abril, em 1970, e faleceu em 2006, em São Paulo, onde residia.

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